domingo, 7 de novembro de 2010

Devaneios


Quando eu saia para rua a caminho do trabalho, minha vizinha ficava me olhando. Debruçada sobre a janela me observava atentamente com um olhar ávido, até, promíscuo. O sorriso era esticado no canto da boca, a mão surgia sobre o queixo para que não deixa-lo cair, o cabelo jogado para traz era amarrado com uma fita vermelha, de certo para mostrar o rosto de quem já se aventurou muito por essa vida e que nada tem a perder. O seu comportamento não era comum como o de outras mulheres, eu sentia algo desequilibrado naquela face meio entorpecida. Acho que ela deveria ter uns trinta e dois anos. Mostrava-se totalmente segura, não tinha vergonha, nem ao menos disfarçava. Quando queria alguma coisa que a deixasse excitada, expelia. Era assim todos os dias, todas as manhãs.
   Quando eu batia o portão, ela aparecia na janela, com um som decisivo falando, “psiu”, “psiu”, quando eu a olhava, ela esticava os lábios e soerguia uma das sobrancelhas como se estivesse me chamando para uma batalha da qual eu gania perde-lo. Olhava meio de soslaio e, educadamente, eu falava um “bom dia” indesejado, como se aquilo fosse resolver o meu caso. Tinha de ser prudente, não podia passar a desonra a minha mulher, pois eu era casado, tínhamos dois filhos, cujos nomes foram dedicados ao meu sogro e ao meu avô. Lembro-me uma vez, nas reuniões de família, o pai da minha mulher falava para os seus irmãos mais novos que eu era o genro que ele tanto admirava, talvez por ser dedicado ao trabalho ou por não debochar dos princípios alheios, talvez  por ter quitado a divida que ele tinha num banco perto de casa. Não obstante, acredito que os méritos nunca vêm por acaso, sempre há algo maquiavélico quando agradam demais. Por isso, duvidava da vizinha, era uma presa fácil, como se um coelho fosse jogado numa jaula de lobos famintos. Contudo, não lhe restaria nada, apenas à alma tardia queimada pelo inferno. Sentia algo ruim nisso tudo, passava pela minha cabeça todos os pecados do mundo em um único “psiu”. Talvez eu sentisse medo da explosão bilabial que saia da sua garganta, entrava em meus ouvidos, e percorria o meu corpo como se fosse uma droga injetada.
  Quando voltava do trabalho, lá estava ela, não perdia se quer um minuto – calculava todos os meus passos, mirava com os olhos de águia o meu peito, colocava o dedo indicador no canto da boca, dava um sorriso lascivo, pousava os seus seios redondos e viçosos no peitoral da janela e, quando eu passava era cada vez mais estridente o seu: “psiu”, “psiu”, aquilo me ia intranquilizando, ficava cada vez mais perigoso, ela decidiu brincar com novas palavras, ousou dizer “gracinha”, “gostoso”, “te pego”.  As palavras enchiam o meu ego, sentia tesão nisso tudo, e fingia traquilo e sereno algo incontrolável. Não podia ceder. Passei e, outra vez, fingi não ter percebido nada.
Noutro dia, saía para ir ao trabalho e lá estava ela, as mesmas palavras se repetiam, às vezes, mudava uma ou outra, mas o ritmo era o mesmo, a mesma sensação, a volúpia do corpo, o desequilíbrio mental aflorado, tudo em grande escala. Passei por ela como se nada tivesse  acontecido, como se tudo estivesse em perfeita ordem. A situação indubitavelmente controlada. Fui em direção ao ponto de ônibus, quando, de repente, percebi que tinha esquecido a minha carteira e voltei para buscá-la. Roberta estava na porta da sua casa, espantei-me ao vê-la no portão, como se tivesse percebido todos os meus movimentos, como se tivesse uma sensibilidade para adivinhar onde seria o meu próximo passo. Uma espécie de guru do amor. Sem suplicar, Roberta agarrou-me pelos braços, jogou-me pelas paredes e falou:
“Não quer entrar, gracinha?” Apontando a porta que dava acesso à sala.
 Fiquei meio sem jeito de falar que estava morrendo de vontade, mas   disse que não podia.
 “Não é a resposta que eu quero escutar, ela falou”.
         “Minha mulher vai sair para trabalhar daqui a pouco, e nós pegará aqui, retruquei”.
         “Não tem problema”.
          “Como não?”
          “E só uma rapidinha. Você me deixa toda excitada”.
         - Roberta pegou minha mão, colocou-a dentro da sua calça de laica bem apertada, fazendo com o que eu sentisse toda a maciez da sua pele, olhou para o meu rosto e mordeu ligeiramente os seus lábios.
  Minhas mãos tremiam, meu rosto estava pálido e desfigurado, parecia à primeira vez. Não estava acreditando que tudo aquilo estava acontecendo bem próximo à minha casa. Minha garganta estava apertada, senti o suor frio descendo pelas minhas entranhas, imaginei mil coisas, das mais pervertidas até as mais lúdicas. Pensei na minha mulher, nas crianças, até no meu sogro, olhando pra mim e sussurrando: “fode gostoso”, “fode gostoso”, como se tudo isso fosse incensurável.
   Entrementes, mantive a pose de macho e dei a ela um sorriso louco. Agarrei-a por trás, deslizei a mão sobre os seus seios e percebi que o bico estava todo enrijecido. Colei meu corpo colado com da Roberta, ela sentiu todo o volume rígido que saía entre as minhas pernas sobre as pernas dela. Contudo, fomos para o seu quarto, joguei-a na cama, fui tirando o cinto de couro que estava meio apertado, joguei a camisa pólo amarrotada perto do criado mudo, o sapato de bico fino italiano se perdia naquele emaranhado de roupas que estavam por ali jogadas a esmo. Pensei em alguns momentos... Falava em alguns instantes... Mais nada iria adiantar, era tudo muito rápido, frenético, exíguo, cada movimento nós levava ao ápice da loucura em exagero, a adrenalina em seu estado maior de ambição. Minhas mãos escorregavam rápidas sobre aquele corpo escultural, meus olhos se enchiam de desejo, meus lábios trêmulos beijavam com exatidão cada lugar que Roberta pedia. Eu me tornara seu escravo. Ela me dava tapinhas na cara, pedia que eu falasse palavrões em seus ouvidos, colocava os dedos dos pés na minha boca e mandava cada vez mais eu obedecer-lhe. Sentia um cheiro acre vindo da sua pele, mesmo assim, o meu nariz obedecia cada curva do seu corpo. Roberta dava risada da minha cara, mastiga o chiclete e fazia bolinhas até estourá-las. Minha mente estava apagada, tudo parecia ser um sonho acordado. Roberta debochava de mim, tinha o poder sobre tudo o que estava acontecendo, até que se levantou da cama e pediu para esperá-la, foi até o banheiro e voltou toda fantasiada. Disse que tinha comprado a fantasia para estrear comigo, queria ver o diabo na cama, tomando chicotadas e suplicando beijos do inferno. Fiquei inerte ao vê-la. Ela me olhava como se eu fosse o último homem que queria seduzir. Roberta me agarrou loucamente, subiu sobre o meu corpo quase nu, tirou toda a sua roupa, pediu para eu segurar a calcinha com a boca, ela parecia pagar uma promessa que não estava sendo cumprida há anos. Tudo estava acontecendo naquele quarto, todos os desejos, todas as promessas, todas as dívidas, todas as culpas e tudo se resumia a devassidão.
    As horas passaram ligeiramente. Acordei. Senti um cheiro de sexo selvagem naquele quarto. Acendi a luz do abajur que ficava próximo a mim. Percebi que Roberta estava deitada na cama ao meu lado. O quarto estava todo revirado, a sujeira espalhada pelo chão mostrava o desequilíbrio mental da noite, objetos sexuais estavam em todo o cômodo. Coloquei a mão na cabeça para pensar o que tinha acontecido ali, ainda não estava seguro, respirava ofegante, coloquei minha roupa e saí. Estava cambaleando de um lado para outro, arrastava a mão sobre a parede para me apoiar. Quando dei dois passos para fora do portão, olhei minha casa e lembrei-me de tudo, cada segundo que passei com a moça do oitenta e sete, minha vizinha, aquela que eu ignorava para não aflorar meus sentimentos, para não aguçar os prazeres da carne, que eu tanto temia, e para não dizer que eu era somente um rapaz frágil. Não tive escolha, minhas reminiscências temiam em aparecer. Andei em direção a minha casa, adentrei num silêncio cômodo para que ninguém percebesse os meus movimentos. O carro da minha mulher estava na garagem. Lembrei que tinha esquecido a carteira em meu quarto. Subo sorrateiramente degrau por degrau sem fazer barulho. Vou até o banheiro para ver se eu tinha algum hematoma. Saio. Vou em direção a meu quarto, crispo a mão sobre a maçaneta da porta, abro-a  e vejo minha mulher seminua, fantasiada, rebolando em  cima da cama, com um chicote de couro amarrado na cintura falando palavras de carinho para o meu vizinho. A cena se repetia na minha cabeça, olhei atônito para o movimento dos dois, fechei a porta e mirei na direção do relógio, ainda não passava das dez horas.